Francisco e Abraão
O que é que leva um homem de 84 anos, doente, no meio de uma pandemia, a demonstrar ser
inadiável a visita ao Iraque insistindo em ir à zona do Curdistão? Um imenso
sentido de dever, uma enorme coragem e uma doação total a uma causa que é a da
Humanidade. Como se sentisse (ou soubesse) que nesta altura da História o chefe
máximo da Igreja Católica tinha que estar justamente no berço da nossa
civilização, a terra de Abraão, no ponto do globo aonde confluem e de onde
partiram as grandes religiões monoteístas. Tinha que visitar locais sagrados do
Islão e rezar em Ur com outros líderes religiosos. Tinha que estar ao lado dos
curdos, cuja lendária identidade e capacidade de resistência é quase uma
metáfora para o que assistimos nas vidas de tantos mais próximos de nós. Para
além de uma visita de um Sumo Pontífice a um país que passou de 1.500.000
cristãos em 2003 para os actuais 400.000 há assim uma enorme carga simbólica.
Como em todo o seu pontificado, Francisco vai à essência estruturante do que
promove a transformação do Homem. Seja ele quem for. Importa levar a cada um de
nós, crentes e não crentes, gestos, palavras e ações que recentrem escolhas de
vida, que respeitem o outro independentemente das suas opções, que se foquem no
que de facto pode levar a uma ruptura com um modelo de sociedade doente e
despromovido de humanismo no seu todo que traga um novo amanhã que mais não é do
que o pôr em prática a mensagem deixada há mais de dois mil anos por Jesus
Cristo. Sempre o conteúdo e não a forma, a vivência plena em vez da
mediocridade, o abanar consciências em lugar do conformismo. A coragem e a força
que vencem o medo e a morte. A simbologia imaterial concretizada em actos em que
nos revemos mas que nos obrigam a parar para pensar no seu porquê e que vai
muito para além da material que ele põe em segundo plano desde o início do
pontificado. Afinal, o que interessa é até onde vai e o que nos mostram as
“sandálias do pescador” e não como elas são. Claro que esta atitude traz com ela
inúmeras resistências, mesmo dentro da própria Igreja, por vezes demasiado
instalada numa fé de faz de conta, mais de parecer do que se ser. Não merece ela
no entanto mais do que um parágrafo naquele que será o livro desta História que
o Papa vindo quase do fim do mundo, como ele próprio disse na noite da sua
eleição, nos ajuda a escrever. Naquele fim de tarde de 27 de Março passado,
caminhando sozinho na Praça de S. Pedro, tinha o Mundo todo nele. Quase um ano
depois é de novo essa união agora mais direcionada para a vontade de renascer e
de refundar que esta viagem também simboliza. É certo que há muito tinha já sido
tentada mas o ser precisamente neste tempo dá-lhe uma dimensão incomensurável
maior. Mais do uma visita apostólica a uma terra mártir, é uma viagem ao coração
da essência da ideia do caminho da luz (Ur) e portanto do bem, que Francisco
quer fazer. Para que o que mais queremos seja possível: o recomeço e a (re)
descoberta da verdadeira dimensão do ser humano.
In Jornal Observador, 3.3.2021
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