Da necessidade da Tapada
As cidades e os países não nascem,
não aparecem nem se moldam do acaso. São fruto de um processo de construção
permanente, de uma soma de vontades, e de personalidades que, pela sua
singularidade e visão são capazes de transformar o que existe em algo
estruturante e benéfico para toda a comunidade transportando para o futuro uma
sempre renovada identidade que nos liga a todos. E há lugares que, pelas suas
características representam tudo isso. A Tapada das Necessidades é um deles. E
é também por isso que importa preservá-la na sua essência.
A História de grande parte do
século XIX português e o impulso dado nas áreas do conhecimento e da
investigação das ciências da natureza, do urbanismo e da paisagem, da
necessidade de educar para a descoberta e para a curiosidade, numa visão
holística da cidade de Lisboa e área envolvente passa seguramente por ali.
É evidente a necessidade de
intervenção que lhe devolva a dignidade perdida. Não se pretendendo que esta
apenas seja uma réplica do que já existiu, deve preservar a sua dupla função de
grande lugar de livre disfrute da população com a natureza e de espaço
percursor e incrementador de boas práticas ambientais com uma identidade única
que acompanha o Portugal dos últimos 300 anos. Uma espécie de história de
Portugal ao vivo contada através do episódio que lhe deu origem, dos edifícios
com os da casa de fresco, da estufa circular e dos torreões do jardim
zoológico, das centenas e centenas de espécies exóticas trazidas para as
Necessidades em perfeita simbiose com as autóctones, dos espaços que a pouco e
pouco se foram desenhando para alcançar uma cada vez melhor perspetiva e sempre
tendo em conta a cidade no seu todo. Uma bela metáfora da alma de Lisboa também,
se quiserem. E que aos responsáveis autárquicos cumpre cuidar e salvaguardar
como património material e imaterial da cidade e do país.
Em todos esses momentos houve
protagonistas que a tornaram possível e cujo exemplo deve ser lembrado como
exemplo de futuro. É que, ao contrário do que é referido no Anteplano para a
Tapada das Necessidades ainda em discussão pública, ela nasceu e foi-se
desenvolvendo e recriando de e para a comunidade. Nunca sobre si própria ou num
sentido puramente utilitarista de uma família. Foi a partir do enorme
laboratório ao ar livre das Necessidades, trabalhando com espécies, algumas
delas únicas, vindas de todo o mundo que o Rei D. Fernando II e a equipa de
jardineiros, botânicos, arquitectos, viveiristas, artistas, entre tantos outros
mestres por ele reunida que foi possível, por exemplo, o Parque da Pena ou o
Jardim da Estrela pelo rei doado a Lisboa. Dali pensou-se a cidade e, portanto,
a sociedade. Não como erradamente é referido no dito plano para “uso exclusivo
da família real” mas como elemento fundamental de uma estratégia absolutamente
inovadora de perceber e conceber o espaço e alargar as mentes. Não é um jardim que
é feito para um rei mas foram vários reis que o quiseram para um país. Numa
lógica transgeracional, de passagem de testemunho e de experiência identitária.
Mais. A Tapada das Necessidades é
também um marco no que se entende hoje como a educação para a consciência
ambiental tendo sido D. Maria II e D. Fernando os seus precursores em Portugal.
Exemplar é o programa de estudos que desenharam para todos os seus filhos e
filhas, nomeadamente dos futuros reis D. Pedro V e D. Luís I e do qual era
parte integrante o trabalho, o acompanhamento e o conhecimento de todo o projecto
que ali estava a ser desenvolvido e que seria mais tarde por estes replicado e
aprofundado com os resultados que todos conhecemos e se refletiriam mais tarde
na figura do rei D. Carlos e em todo o seu empenho e incremento nos campos das
artes e da ciência em Portugal . Ao fazerem-no, muito à frente do seu tempo,
demonstravam à sociedade o caminho a ser seguido no campo do conhecimento e do
impacto no desenvolvimento cognitivo e social das crianças do contacto
libertador com a natureza em toda a sua dimensão e responsabilidade.
É assim da mais elementar justiça
que este legado hoje tão actual como premente seja perpetuado no plano a ser
executado na Tapada pela Câmara Municipal de Lisboa quer com a referência
expressa aos protagonistas que a tornaram possível em locais emblemáticos da
sua acção quer com a implementação de um projecto pedagógico com o seu nome que
proporcione a vivência plena do que as Necessidades (ainda) conservam e que é
nosso dever redescobrir. A cidade e o país agradecem que os dinheiros públicos
contribuam para preservar a nossa identidade. Porque sem ela não há frutos, nem
jardins que nos valham.
(Fotografia/Amigos da Tapada)
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